Recordações da Época Passada. O sótão.

Oldemiro Lima, a dar duro no Sótão.

Smells Like Teen Spirit. Cheira a pó e a magnésio. Aneurysm. Abrenuncio. Mais pó, mais magnésio, mais dores nos dedos. The Man Who Sold The World. Toca a campainha. Molly’s Lips. Vem alguém a subir as escadas. Son Of A Gun. Risos. Mexican Seafood. Merda de presas. Something in the Way. A cassete enrolou outra vez. The Man Who Sold The World. Outra vez. Territorial Pissings. Merda de aparelhagem. Come as You Are. Por quatro contos não se podia esperar melhor.

No inicio era o pó. Literalmente o pó. Toneladas de pó, cristalizando objectos, moveis e até o próprio tempo. Cada vez que levantávamos uma tábua ou desviávamos um armário, viajamos no tempo. Andávamos para trás uma geração e efabulávamos as mais loucas histórias. Éramos bons nisso. Ficavam a doer-nos os abdominais de tanto rir. Éramos bons nisso.

Quando as vigas de madeira do telhado ficaram à vista, surgiram aquelas palavras escritas a vermelho vivo. Abrenuncio. Depois outra. És feliz não tens problemas. Pedimos explicações. Não nos deram. As histórias ali passadas não eram nossas. Aceitamos. O futuro sim seria nosso, e para já, se nos portássemos bem, o sótão também.

Começamos a carregar placas pela longa escadaria acima. Mais vigas, meios-fios e barrotes afins, em quantidades tais que os donos da casa ficaram com medo que o telhado lhes caísse em cima da cabeça. “Não há problema. Isto é mesmo assim, faz parte da construção de muros de escalada em sótãos”, dissemos tranquilizadores. “Ai, sim?”.

Os muros construíam-se com ângulos de 60º ou 70º em relação à vertical. Assim conseguia-se em espaços com um pé-direito reduzido maximizar a distância escalável, mas é também um dos ângulos menos eficazes para treinar porque limita muito o tamanho das presas para além de não ter quase relação para a rocha real. Enfim, era a fruta da época. Tínhamos visto um em Sintra, do Rui Carvalheira, então um dos primeiros a surgir para as bandas de Lisboa e prometeram-nos um power infinito treinando em semelhante máquina de tortura. Não precisávamos de muito mais para ficar convencidos, só precisávamos de um espaço. O Martinho tinha um sótão vazio e mão-de-obra não faltava.

Exageramos. Nunca fomos de meias medidas. E aquilo nunca mais ficava pronto, mesmo trabalhando todos os dias depois das aulas. Ao fim de um mês épico de trabalho quase diário o primeiro muro ficou montado, o tal de 60º, depois ao longo de um ano foram-se fazendo melhorias e acrescentos como se de uma teia de aranha se tratasse. Na versão final teria 50 metros quadrados escaláveis, mais de 500 presas, campus board, sala de musculação, tudo e mais alguma coisa.

A instalação sonora era garantida pelo rádio-gravador mais barato que encontramos, e inexplicavelmente, ou por preguiça, ou por eficácia, só existia uma cassete, um mix dos Nirvana que passou milhares de vezes, a tal ponto que ainda hoje ouvindo algumas daquelas musicas sinto um impulso nervoso para começar a apertar.

Os treinos eram caóticos, duros e divertidos, sempre pontuados pela presença eléctrica do anfitrião. Que mal conseguia dormir, estudar ou pensar com uma muro daqueles a pairar por cima do seu próprio quarto. Um tipo com dezassete anos a explodir para a escalada com uma coisa daquelas literalmente por cima da cabeça, retrospectivamente tenho de admitir que é demais para qualquer um.

Um dia, por exemplo, o Martinho estava pendurado a aquecer fazendo tracções numas presas por cima de uma porta e alguém disse: “Aposto que não te aguentas aí com um gajo pendurado em ti”, não foi preciso mais, perante o seu ar de desafio, alguém saltou logo e agarrou-se a ele, que impávido e sereno continuou pendurado como se nada fosse, face à provocação, saltou outro, e já eram dois pendurados, e o Martinho nada, “E três?”, salta mais um, agora é um tipo agarrado a dois puxadores a ranger os dentes e outros três pendurados nele a rir e a gritar. Até que de repente caem todos com estrondo, no meio da confusão olho para o chão e o Martinho continua titanicamente agarrado às duas presas, olhamos todos para cima incrédulos, a placa de madeira apresentava dois buracos redondos perfeitos. Para nós isto passou a ser a definição de treino com carga.

Depois desvaneceu-se. Os interesses divergiram, as trajectórias separaram-se, muitas para mal se voltarem a tocar. O pó voltou. Lentamente. Cristalizando mais uma vez o tempo algures num sótão da cidade do Porto.

The Man Who Sold The World. As coisas nunca mais serão como antes. Come as You Are. Vem alguém a subir as escadas. Smells Like Teen Spirit. Decididamente nunca mais serão assim. Aneurysm. Risos. Something in the Way. O espelho quebrou-se algures pelo caminho. Molly’s Lips.  Riamos até nos doerem os abdominais. Son Of A Gun.  Éramos bons nisso. SM

2 Responses to Recordações da Época Passada. O sótão.

  1. Muito Bom!!!!!
    Eu ainda , tenho o meu no sotão 🙂
    Abraço
    João Animado

  2. Pedro Rodrigues diz:

    Até fiquei com uma crise de bronquite asmática só de ler. Miro a estrear uns Anazasi acabadinhos de ao mercado… Gostei do pormenor das crashpads amanhadas com almofadas das velhas cadeiras de palhinha, que pululavam pelas salas de jantar das casas de família da Invicta.

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